Entrevista: Luiz Fernando Carvalho conta como foi recriar “A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector, para o cinema

entrevista de João Paulo Barreto

O peso de uma adaptação de um texto tão denso quanto o de Clarice Lispector em “A Paixão Segundo G.H.” é fator preponderante e algo inevitável de se sentir em sua transposição de palavras para imagens. Trata-se de um projeto ambicioso de se concretizar. Luiz Fernando Carvalho, diretor da obra-prima “Lavoura Arcaica” (2001), é, possivelmente, o nome mais adequado para tal desafio.

Em seu processo de criação dos símbolos imagéticos a representar a escrita de Lispector, o cineasta afirma não ter feito uma adaptação, mas, sim, uma reação criativa à leitura. Tal definição atinge o cerne da experiência de duas horas de imersão. De fato, “A Paixão Segundo G.H.” (2024) não é um filme para todos os públicos. Principalmente nos ansiosos, fugazes e conectados dias atuais, nos quais os olhos frenéticos a focar em smartphones querem as respostas rápidas e mais preguiçosas possíveis. Não é isso que o espectador que se aventurar na sessão de “A Paixão Segundo G.H.” vai encontrar.

Em seu tom constante, a partir de um monólogo parcimonioso, o filme de Carvalho transfere para a sua audiência um sentimento de contínuo preencher de vazios. A partir do mergulho mental de sua protagonista, que passa por uma crise existencial em pleno 1964, ano fatídico para nossa História, somos levados junto com ela por esses labirintos. Maria Fernanda Cândido, com sua beleza estonteante e madura, segura tal peso de maneira extenuante. No filme, sua personagem, a G.H. do título, se depara com uma barata no mesmo dia em que se vê sozinha, sem sua empregada doméstica, Janair, demitida pouco tempo antes. Nesse encontro com o inseto, sua viagem mental se prolifera de modo questionar sua própria sanidade.

O filme, em seu formato de tela reduzido a criar justamente essa sensação de sufocamento de sua personagem central, cria para sua audiência sensações de asco semelhantes, mas nunca apelativas, friso. Na ideia de transpor para imagens o texto de Clarice, sua versão cinematográfica prima pelo esmero de traduzir aspectos visuais poderosos de toda aquela agonia cerebral e emocional. Em suas palavras, Lispector aborda nuances que Carvalho valoriza de maneira sagaz. É o caso da citada personagem de Janair, que, aqui, ganha a presença marcante de Samira Nancassa, atriz oriunda da Guiné-Bissau.

No longa, a aparição de Samira como a funcionária da mulher branca e abastada, mas que não consegue se comunicar, gera em G.H. o catalisador de uma percepção tardia. A de que tinha em sua companhia alguém cuja troca lhe seria de suma importância. Ao adentrar no quarto imaculadamente limpo deixado para trás por Janair, G.H. se depara com uma pintura em carvão na parede. O mesmo carvão, objeto mínimo e ancestral a simbolizar tanto a dedicação silenciosa de Janair às artes, quanto sua vontade concretizada de emancipação. No seu ato simples de tirar o pano que lhe cobre a cabeça, há muita força a rimar com o poder do texto de Lispector.

Quando emergimos daquele mergulho, após as duas horas em que permanecemos nas fossas abissais da mente de G.H., o filme acaba por nos deixar uma marca indelével. Cabe muito ao espectador atento perceber a riqueza daquela densa aproximação. Felizes são os que reagem ao convite à análise de Lispector e a abraçam. No papo abaixo, Luiz Fernando Carvalho fala sobre o processo de criação da obra, sobre montagem, sobre sua relação com o cinema e sobre o Brasil que quase caiu em um precipício sem volta. Confira!

Ao sair da sessão de “A Paixão Segundo G.H.”, e já pensando nesse momento de entrevista, fiquei me perguntando o que lhe perguntar sobre o filme. Lembrei de David Lynch, que já disse que não tem muito o que dizer após uma sessão de seus filmes, uma vez que a obra fala por si. Creio que a adaptação do livro de Clarice Lispector feita por você seja um caso semelhante. Por isso, uma pergunta que eu queria te fazer é como se deu o processo de tradução das palavras escritas em imagens cinematográficas no filme?
Primeiro, eu não trago nenhum pressuposto cinematográfico. Parto da tela em branco, mesmo. Ela me interessa ser preenchida a partir da minha relação com essa literatura. Não uso e não gosto do termo “adaptação”. Aqui, é uma espécie de reação criativa à leitura. Uma aproximação, talvez. O meu procedimento dessa aproximação, qual é? Primeiro, eu reivindico a palavra como um dos elementos fundadores da linguagem cinematográfica ao lado das imagens, e não abaixo. Elas não estão em disputa de território, entende? Uma não está hierarquicamente acima da outra, em detrimento da outra, etc. Então, dando potência a uma linguagem literária, aos seus espinhos, à sua alteridade, à sua estranheza, eu dou volume a essa. Privilegio essa potência literária e, em paralelo, também dou potência à linguagem cinematográfica. Isso para dar conta, inclusive, desses espinhos da estranheza dessa linguagem. Porque não se trata de uma linguagem naturalista no campo literário. E, depois, eu produzo um encontro entre essas duas alteridades. São duas coisas diferentes. E desse encontro, dessa fricção, desse atrito, desse amor, desse conflito, seja lá o que aconteça nesse encontro, o fruto desse encontro, dessa alteridade que, sim, são coisas diferentes, enfim, o encontro dessa alteridade é o corpo do filme. É uma coisa inominável. Não sei que nome dar, qual gênero tem. Não sei se posso chamar de filme, mas, enfim, é uma experiência que traduz a minha experiência com a leitura e a entrada de uma lente, ali, em todas as entrelinhas.

O filme, com sua opção de formato de tela, traz muito da sensação de sufocamento, de clausura mental da protagonista vivida por Maria Fernanda Cândido de modo tão intenso.
Sim, essa ideia do confinamento, inclusive, quando o filme passou em Paris, uma das pessoas que não era brasileira me fez exatamente essa pergunta. Ela fez uma ponte com a Covid. Porque a pessoa que fez a pergunta disse que se sentiu naquele confinamento, naquela solidão, no apartamento dela. E passou, dali, então, a rever todas as coordenadas de vida. Todos os seus posicionamentos, sua moral e etc… A linguagem do filme é criada para ser aberta. Para oferecer o filme para que a pessoa crie o seu próprio a partir disso. Você viu um filme. E cada pessoa vai ver um filme diferente se ela estiver aberta. Então, essa ideia do confinamento me parece muito potente. E, sim, a ideia de que o filme seria todo estruturado a partir de close era fundamental. Porque foi o primeiro romance da virada de linguagem da Clarice Lispector. Foi o primeiro romance escrito em primeira pessoa. Então, o “eu” entra em cena. Esse eu é esse close. Mas esse close é, ao mesmo tempo, um close que não é um narrador legislador autoritário. Muito pelo contrário. Ele é aberto. Ele está oferecendo possibilidades e encruzilhada de perspectivas. Ele está oferecendo perguntas mais do que respostas. Está tentando dar conta de si, da experiência de estar vivo, do que aconteceu ontem, do último relacionamento. Enfim, ele se desdobra em muitas questões, em muitas dúvidas e muitas reflexões sobre o próprio gênero humano e do mundo. E aí seria o mundo… Que mundo é esse que está diante de G.H.? É um mundo todo organizado, constituído, criado, erguido pelos homens e para os homens. Então, talvez, a estrutura principal de todas essas camadas em que ela vai atravessar nesse convívio com ela mesma, nesse confrontar se com o si mesmo, seja a camada principal. Talvez seja essa crítica ao mundo, o mundo construído, o mundo patriarcal. O mundo consequentemente machista e consequentemente capitalista. Enfim, esse conjunto de leis, ordens que se configura em um sistema que nos rege até os dias de hoje. Nesse sentido, o romance é absolutamente moderno por ter sido escrito na década de 1960, em plena ditadura militar. Mas apesar de alguns avanços aqui e ali, a gente ainda se confronta com várias das questões com que G.H. se debate. Então, eu também sou contra essa ideia de sistemas. Do sistema, principalmente, como modelo único e hegemônico. Eu acredito em conexões. Porque é exatamente essa ideia de conexões, que também é uma ideia simbiótica com tudo e todos, que é a via crucis a qual G.H. vai trilhar. Ela vai em direção ao contrário, ao oposto, ao extremamente radical daquilo que ela imaginava do mundo. Seja em gênero, classe social, raça e espécie, inclusive.

Você tocou no ponto que era minha próxima pergunta em relação à visibilidade feminina. A personagem de Janair, uma mulher negra, ganha um destaque imprescindível no filme. E lembro de ter lido que essa questão do apagamento da invisibilidade feminina não era aprofundado pelos estudiosos de Clarice Lispector. Do mesmo modo, o filme pontua o momento em que o livro foi escrito, no ano de 1964, um momento divisor das trevas em que entramos com o golpe militar, que você ilustra no filme com as revistas que G.H. folheia. Houve essa intenção de nos colocar diante daquele sufocamento social e político em reflexo ao estado de G.H. como personagem?
Sem dúvida nenhuma. Porque, apesar de termos vencido um quase golpe que aconteceu há pouco tempo, essas pessoas com esses desejos de estado de sítio, de uma ditadura, elas ainda estão aí na sociedade. E esse contexto me pareceu necessário. Veja bem, é um texto escrito por uma mulher poderosa, empoderada que é a Clarice, no qual ela vai radicalmente contra todas essas cercas que determinam essa espécie de castração, da liberdade e das liberdades todas. E esses apagamentos dos outros saberes, das outras culturas, que não aquelas decretadas pelo patriarcado branco europeu hegemônico. Então, essa entrelinha da Janair me parece fundamental de ser recuperada. Minha Janair é a Janair do século XXI. É aquela que vai tirar aquele pano de cabeça no final. Aquela cena é uma cena criada por mim. A cena da revista também é uma cena criada por mim. A cena da revista a gente poderia chamar de um minidocumentário que abre um parêntese ali, ao som de um helicóptero ensurdecedor, como se fosse algo que ainda nos vigia. E a Janair, com a sua inscrição a carvão deixada no quarto da doméstica, é um diálogo muito potente, alquímico. Esse material tão arquetípico como o carvão, tão ancestral como o carvão. É um monólogo. Aquele é o monólogo de Janair. Então, a partir dessa inscrição, toda a desconstrução de G.H. se dá. Não haveria desconstrução de G.H. se não houvesse essa inscrição. Janair se inscreve no romance. Acho isso de um posicionamento político muito importante e do qual eu tive que refletir e dar corpo, voz, protagonismo a Janair.

Como foi o processo de montagem do filme na missão de encontrar um uníssono entre os diversos momentos de Maria Fernanda Cândido captados em sua atuação e os aspectos visuais do filme?
Comecei a montar imediatamente após a filmagem. (N.E. A produção foi filmada em 2018). Porque eu filmei com essa urgência de quem estava já sentindo uma sombra vindo sobre a cultura e fiquei com medo até de que esse valor que estava depositado ser requisitado. Porque é um filme de baixo orçamento do período Dilma, de um edital de baixo orçamento de 2014. Eu filmei dentro dessa urgência e comecei a montar logo em seguida. Montei em São Paulo com o Marcio Hashimoto. Ele já havia montado alguns projetos meus. Nós não tínhamos uma mediação de um roteiro. Nós tínhamos o romance e algumas anotações da Melina Dalboni, que dava conta das coordenadas principais do romance. E a partir daí, toda essa ideia de não mediação, de experimentação foi ganhando forma. Forma talvez para mim a questão mais sublime e mais difícil de ser encontrada, entende? E o roteiro sempre, para mim, foi a montagem. Acredito que o roteiro, qualquer roteiro em qualquer filme, inclusive até os de caráter mais comerciais, o roteiro final é a montagem. Montagem, para mim, é um dos momentos mais saborosos. É o momento da reflexão final.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual

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